quinta-feira, 18 de junho de 2009

Tipo de Collants e a porta



Todas as tuas esperanças acabam protagonizadas num banco de pedra vazio. Desces a rua e o vento acaricia-te os cabelos, nestes momentos pensas como tudo está em perfeita sintonia, como parece uma cena de um filme. Pensas ainda que ao virar da esquina ele vai lá estar, de rosa na mão (característica opcional), à tua espera. Sempre à tua espera.
Mas ao dobrares a esquina os teus olhos alcançam apenas o vazio da rua e pensas como a tua vida não é um filme, como nada está à tua espera a não ser o senhor do condomínio a queixar-se de que não fechaste a porta quando saíste de manhã.
Então entras em casa na esperança de que alguém te tenha deixado uma mensagem no atendedor de chamadas, mas ninguém o fez a não ser o senhor do condomínio a lembrar-te para não te esqueceres de fechar a porta quando saíres de manhã.
Deixas-te cair na cama num último suspiro e olhas para o janela, ainda aberta, a pensar como quando eras nova sonhavas mudar o mundo, mas isso não aconteceu, porque a tua vida não é um filme.
E quando finalmente te levantas, com os olhos húmidos mesmo prontos a rebentar num diluvio porque o dia tinha corrido mal, a campainha toca e o teu coração entra numa corrida acelerada consigo mesmo.
Corres para a porta, escorregando no tapete do hall de entrada, e abres a porta com um tremendo sorriso. Este, que é tão cheio de esperança, em milésimas de segundo acaba por se desvanecer. Aparentemente o príncipe encantado não sabe a tua morada, mas o senhor do condomínio sabe e veio dizer-te para que não te esqueças de fechar a porta sempre que abandonas o edifício porque é um pequeno gesto para o bem de todos.
Respondes com educação mas ardes por dentro. Quando fechas a porta deixas-te escorregar na parede até estares sentada no chão. Não existe nenhum tipo de collants e espada brilhante, ou se existe provavelmente deixou-se enganar pelo bruxa do segundo esquerdo.
Arrastas-te para o sofá com a única coisa que ainda está dentro do prazo – um iogurte – no teu frigorífico e ligas a televisão na esperança de que o dia ainda possa melhorar. Consegues apanhar um filme qualquer em horário nobre e sabes a tortura que é ver a vida dos outros a correr bem mas este sentimento masoquista aquece-te a alma por segundos e pensas mesmo que talvez – talvez! – o tipo de collants tenha ficado preso no elevador e te vá tocar à campainha brevemente.
Mas o filme acaba – acaba sempre! – e és obrigada a enfrentar de novo a realidade. Não adianta pores o novo DVD que compraste, não adianta iludires-te com outra história de encantar com um final feliz. E o teu estado deprimente atinge o auge quando te deitas no sofá como quem perde todas as forças e ficas a ver o Discovery Channel sobre as novas abelhas assassinas. Dás por ti a rezar que as suas pequenas asas consigam aguentar a viagem de África até ao teu apartamento para pôr fim ao teu sofrimento. E depois levantas-te tentando afastar o pensamento suicida da tua pobre cabeça. Pensas na estupidez que estás a fazer e para acabar – ou adiar – estes pensamentos idiotas resolves ir deitar-te. Convences-te que é do cansaço e amanhã tudo parecerá melhor.
Mas a manhã nasce e o despertador acorda-te com o seu som irritante e tu imploras que o relógio ande para trás, mas ele recusa-se. São muito snobes estes relógios hoje em dia!
Quando estás pronta para levantares âncora para mais um dia duro de trabalhos em cima de trabalhos há uma folha cuidadosamente dobrada debaixo da porta. Os teus olhos não acreditam no que vêm...baixas-te e pegas nela...quando a abres...

Não se esqueça de fechar a porta! É para segurança de todos!

O presidente do Condomínio


Acabas por amachucar a folha e deita-la por cima do ombro, fechas a porta atrás de ti com força. Não há noites de sono que nos valham nestes casos!
Desces as escadas, possuida pela raiva porque o elevador deixou de funcionar e caminhas até ao carro com a cabeça a ferver.
E de repente...
“ A PORTA!”
corres desenfreadamente para trás só para não teres de ouvir mais um comentário sarcástico por cima de um dia infernal.
Colocas a mão no puxador e olhas para cima.
- Uau...




O tipo de collants encontrara o caminho para casa...

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Maps*

Imaginei um barco ao longe, de madeira, como o Pérola Negra dos Piratas das Caraíbas, mas restaurado e de velas restauradas. Imaginei-nos vestidas, naquele faz de conta, com roupas que mais parecem trapos e vestígios de batalhas emocionantes. Também imaginei mais duas pessoas que não interessam porque não é delas que vim falar.
Uma vez disseram-me que tinha algum jeito para as palavras e eu achei engraçado porque na verdade isto a que chamam jeito para as palavras é mais jeito para o coração.
Mas voltemos ao barco: o dia está agradável, alguns tímidos raios de sol aquecem-nos as costas constantemente marcadas pelo vento forte próprio daquela praia. E nós estamos ali, prontas a içar ancora e a desfraldar as velas. Prontas para ir em busca do conhecimento que aqui é escasso e não serve para alimentar a nossa sede.
Andámos à deriva nas ondas da vida, fomos apanhadas por tempestades e dilúvios de água salgada, mas estranhamente morna, como se o céu chorasse sobre nós. Ultrapassámos, na verdade, ultrapassamos sempre. E nesses dias, em que parece que o céu nunca se vai tornar azul novamente, corríamos para o convés e gritávamos o mais alto que podíamos. Deixávamos tudo sair de dentro de nós, deixávamos que a chuva nos libertasse da prisão, deixávamos que uma erupção explodisse dentro de nós. E depois, deixávamos- nos ficar deitadas a olhar o céu, ocasionalmente traçado uma um raio de luz, e ficávamos em silêncio. Só assim, a ouvir a chuva, a esperar que ela lavasse o que restava de nós, a esperar que talvez ela e o tempo se juntassem e fizessem a dor passar mais depressa. E estranhamente, tudo passava. Umas vezes mais depressa que outras, mas passava sempre. Coincidência? Queríamos pensar que sim, porque assustava-nos a ideia de não ser. Mas sabíamos que sempre o céu escurecia, o grande dilúvio se aproximava.
Mas em oposição a esses dias havia aqueles como o de hoje. Em que o sol acariciava a nossa pele e aquecia-nos daquela maneira tão particular que ele tem de o fazer. Aqueles em que nos apetecia rir sem parar e rebolar no chão. Aqueles em que dizíamos coisas estúpidas, aqueles em que lembrávamos parvoíces, aqueles em que nos sentíamos bem. Engraçado que esses dias sempre me pareceram mais curtos, talvez porque eram os que realmente importavam.
Foi isso que decidimos quando nos sentamos à beira mar da nossa última paragem. Era um porto. Um porto seguro onde o nosso barco tinha vindo dar ao cais depois de mais uma tempestade. Era um sítio um tanto ou quanto extraordinário, de aspecto antigo, de entradas grandiosas e salões frios mas encantadores. A praia ia-se afastando à medida que entravamos naquele novo mundo. Acabámos por ficar. Acabámos por fazer amizade com pessoas novas e até que nem estamos a desgostar deste novo porto.
Sabemos porém, que nem tudo dura para sempre. Também sabemos que o mais provável é só ficarmos aqui três anos, antes de nos fartarmos e partirmos de novo para outra aventura. Também sabemos que esse tempo vai passar a voar, porque passa sempre e que no final, vamos desejar voltar a trás e viver tudo de novo. Vamos chamar a este sítio casa, mas também vamos ter de novo a sede de conhecimento. Aqui, também chove. Também corremos e também gritamos. Aqui, ainda somos nós, ainda somos amigas e ainda sabemos que podemos confiar uma na outra.
Trocámos os farrapos e as espadas por calças de ganga e livros, mas as cicatrizes de guerra ficaram. Essas não se podem trocar, nem apagar, nem sequer tornar menos vivas na memória, porque essas ficam sempre, duram sempre, atormentam-nos para sempre, mas à medida que o tempo passa e a chuva cai elas vão-se tornando mais suportáveis e a dada altura conseguimos olhar para elas e esboçar um sorriso.
E esta é aquela altura em que tu perguntas o que aconteceu ao barco e à praia. A praia deu lugar a um parque, mas no fundo ainda vive perto de nós, mesmo à saída da nossa nova casa. O cheiro a sal ainda é perceptível por baixo da areia molhada. E o barco? Esse parou dentro de nós. Está num recanto do nosso coração à espera que o tempo passe e que as chuvas caiam, espera que três anos passem. Bem amarrado com nós fortes de marinheiro, espera-nos a nós.
E nós? Nós pegamos nos livros e vamos a correr, não para o convés mas para uma sala de aula, porque a campainha já tocou e vamos ter aquela stora que nos assusta particularmente. E no caminho desejamos ver aquela pessoa que apesar de trazer tempestades e nevoeiros também nos dá uns raios de Sol quando sorri. Somos masoquistas dessa maneira, mas faz parte de nós. Despedimo-nos rapidamente com um beijinho terno na bochecha e navegamos para outras ilhas, não muito distantes.
Ainda somos nós. E vamos sempre ser...

(dedicado a Catarina Tinoco)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Horas doces

Mandou-me sentar à sua frente, após longos minutos a olhar-me de cima a baixo. Nem acreditava que estava ali outra vez, frente a frente com a minha consciência. Só que agora a minha consciência tinha-se transformado numa figura de olhos azuis como o mar e cabelo ondulado. Sentado numa cadeira de vime, baloiçava-se olhando para o tecto como se esperasse que algo se projectasse lá.
Pelo canto do olho vi-o. Outra vez? E porque captava sempre a minha atenção quando precisava de me concentrar em...
Os olhos azuis fixavam-me agora.
“Um de cada vez malta!” pensava eu com os neurónios já a temperaturas alucinantes.
Remexeu-se no banco de jardim, segurando a palheta esbranquiçada com os lábios, aconchegou a guitarra no colo e olhou escassos segundos na minha direcção.
“Concentra-te!!!” ordenei a mim mesma.
- Com que então aqui outra vez...(longo suspiro)...mas a menina não aprende?
“Pois ...acho que não”. Apesar dos seus olhos transbordarem confiança e vida, estávamos perante um senhor de alguma idade. Já mostrava madeixas brancas por entre os cabelos negros e rugas nos cantos dos olhos. Senti uma vontade enorme de o encher com perguntas sobre toda a sua vida, mas sabia ser uma ocasião imprópria para o fazer...dadas as circunstâncias.
- Querer-me contar o que aconteceu desta vez?
“É que nem eu sei...” foi o pensamento que rapidamente engoli. Tantas tinham sido as vezes que ali tinha estado em frente dele que naquele momento parecia a única coisa constante na minha vida...não que isso fosse necessariamente bom, mas o cheiro a primavera tornava acolhedor o alpendre o que me fazia sentir a casa, era como se os problemas pairassem sobre a minha cabeça mas sem exercer qualquer tipo de poder sobre mim... contava-se pelos dedos as vezes que me sentia assim.
Balancei também eu na cadeira. Já se sentia o cheiro intenso a relva molhada e a terra quente.
Os meus olhos traíram-me espreitando discretamente – tão discretamente que nem eu me dei conta! - para o banco de pedra uns metros mais à frente. O silêncio, da preguiça dos dias quentes, permitia que se ouvisse a doce melodia da guitarra. Quem me dera saber tocar assim...quando ouvia aquela melodia parecia que todos os meus outros sentidos ficavam apurados. O cheiro da relva tornava-se cada vez mais intenso, os dedos acariciavam o vime da cadeira, as cores daquele cenário tornavam-se mais vivas e quase conseguia saborear a frescura da água que dançava na pequena fonte no meio do pátio.
- Mas para onde olha com tanta curiosidade?
Balancei a cabeça na direcção da personagem sem sequer pensar. O velho sorriu e pela primeira vez em muitos anos vi os seus olhos brilharem.
- Conhece-lo? – perguntou-me num tom quase paternal que me fez mexer desconfortavelmente na cadeira.
- Vejo-o muitas vezes...
- A menina sempre teve o dom de fugir às perguntas...perguntei se o conhecia, não a regularidade com que o fixava.
“Eu não o fixo!” ripostei, mas para dentro, não queria agora discutir pormenores de gramática, nem queria que me provasse que mentia a mim mesma quando me convencia de que era um mero olhar.
- Não sei...
- Não sabe? Como não sabe?
Sorri, rindo-me da resposta que iria guardar para mim mesma. Nunca tinha falado com ele, nunca lhe tinha tocado, nunca sequer me tinha aproximado mais do que alguns metros; mas sentia que o conhecia, os seus gestos já se tinham tornado familiares e os meus olhos já se haviam acostumado à sua beleza invulgar.
A melodia estava agora em perfeita sintonia com os últimos raios de sol da tarde, em breve, sabia-o eu, levantar-se-ia e partiria tocando melodias harmoniosas rua abaixo. Em breve, sabia-o eu, os meus sentidos voltariam à habitual percepção banal das coisas.

Mas por agora só o pôr-do-sol e a doce melodia...

O cheiro da relva a tornar-se cada vez mais intenso, os dedos a acariciar o vime, as cores do cenário a tornarem-se mais vivas e o sabor a frescura, da água que dançava na pequena fonte no meio do pátio...