quinta-feira, 29 de outubro de 2009

3600 segundos



Comecei a escrever naquele papel branco A4 tudo aquilo que pensava que sabia sobre o mundo, enchi-o de letras, de sonhos, de promessas e no final...enrolei-o e fiz do lixo o meu "cesto". Às quintas feiras torno-me jogadora de basquetebol profissional não sabiam?
Mas ultimamente tenho enrolado muito papeis com promessas, tenho feito do lixo o meu "cesto", mas por muitos pontos que marque o mundo ganha sempre, sem nem sequer encestar.
Hoje vi-o com uma pedra no peito e rios nos olhos. E enquanto as palavras nos fugiam, tentávamos correr atrás delas, mas não conseguimos. Será que o mundo ganha sempre? Será que temos que ser sempre personagens secundárias na nossa própria vida?
Hoje ela correu para mim com sede de ódio nos olhos e um sorriso maléfico na cara de menina. Perdoo-lhe a impaciência e o conformismo, porque fui eu mesma que o exigi, mas não a posso impedir de se banhar nas correntes de acrimónia em que se envolve profundamente. Sim, há dias em que eu própria me queria afundar nessas águas turvas, mas não acho que me iria sentir melhor.
Hoje vi-o a fixar o mesmo ponto vezes sem conta, a passar por mim sem me ver, a ignorar o mundo à sua volta porque lhe tiraram a última esperança que tinha. Tenho a certeza, embora não o conheça à muito tempo, que se lhe perguntasse ele me diria que preferia ser atingido por um piano atirado de um décimo andar do que sentir aquela dor asfixiante da qual era impossível encontrar alívio. Dói ouvir que nunca vai acontecer.
Hoje ela atirou-me um olhar gélido que me parou o coração. Sim...já faz parte da rotina, mas não deixa de doer apenas porque é repetitivo...acho que até estranharia se não levasse aquele olhar para a primeira aula do dia. Kant fizeste o teu melhor, mas a intenção já não importa. Irei morrer durante segundos todos os dias até morrer para sempre.
Hoje vi-o a cravar as letras na capa do caderno. Um dia que tinha começado bem tinha-se revelado na maior mentira que alguma vez enfrentou, e não podia simplesmente ignorar, era-lhe impossível passar por cima disto, ainda mais por baixo, então, enquanto o vi-a atirar-se de cabeça para o meio daquela escuridão...engoli em seco. Um dia...vemo-nos do outro lado.
Hoje ela escondeu-se nos meus braços a chorar compulsivamente. Será o fim um novo início? Ou acabou tudo por aqui? Terá isto algum sentido? E quando dizemos que ultrapassamos, teremos realmente ultrapassado? Ou estamos apenas a encher a nossa caixinha de Pandora um pouco mais até nos libertarmos finalmente?
Hoje vi-o, hoje ela, hoje vi-o, hoje ela, hoje vi-o, hoje ela...até que ele chegou. E as nuvens afastaram-se para o Sol libertar uma raio ofuscante. E o meu coração recomeçou a bater, o sorriso voltou à minha cara, a escuridão escondeu-se numa esquina longínqua. Gostava de ter esse poder que tu tens, esse de aquecer corações e de libertar. Dei-lhe a mão e apertei-a com muita força. Agora sim...agora podíamos voltar atrás e ajuda-lo a ele, a ela, a ele, a ela, a ele, a ela. E o mundo rendia-se a cada passo nosso.

Porque hoje encestamos.

Porque hoje, finalmente, ganhámos.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Tipo de Collants e a porta



Todas as tuas esperanças acabam protagonizadas num banco de pedra vazio. Desces a rua e o vento acaricia-te os cabelos, nestes momentos pensas como tudo está em perfeita sintonia, como parece uma cena de um filme. Pensas ainda que ao virar da esquina ele vai lá estar, de rosa na mão (característica opcional), à tua espera. Sempre à tua espera.
Mas ao dobrares a esquina os teus olhos alcançam apenas o vazio da rua e pensas como a tua vida não é um filme, como nada está à tua espera a não ser o senhor do condomínio a queixar-se de que não fechaste a porta quando saíste de manhã.
Então entras em casa na esperança de que alguém te tenha deixado uma mensagem no atendedor de chamadas, mas ninguém o fez a não ser o senhor do condomínio a lembrar-te para não te esqueceres de fechar a porta quando saíres de manhã.
Deixas-te cair na cama num último suspiro e olhas para o janela, ainda aberta, a pensar como quando eras nova sonhavas mudar o mundo, mas isso não aconteceu, porque a tua vida não é um filme.
E quando finalmente te levantas, com os olhos húmidos mesmo prontos a rebentar num diluvio porque o dia tinha corrido mal, a campainha toca e o teu coração entra numa corrida acelerada consigo mesmo.
Corres para a porta, escorregando no tapete do hall de entrada, e abres a porta com um tremendo sorriso. Este, que é tão cheio de esperança, em milésimas de segundo acaba por se desvanecer. Aparentemente o príncipe encantado não sabe a tua morada, mas o senhor do condomínio sabe e veio dizer-te para que não te esqueças de fechar a porta sempre que abandonas o edifício porque é um pequeno gesto para o bem de todos.
Respondes com educação mas ardes por dentro. Quando fechas a porta deixas-te escorregar na parede até estares sentada no chão. Não existe nenhum tipo de collants e espada brilhante, ou se existe provavelmente deixou-se enganar pelo bruxa do segundo esquerdo.
Arrastas-te para o sofá com a única coisa que ainda está dentro do prazo – um iogurte – no teu frigorífico e ligas a televisão na esperança de que o dia ainda possa melhorar. Consegues apanhar um filme qualquer em horário nobre e sabes a tortura que é ver a vida dos outros a correr bem mas este sentimento masoquista aquece-te a alma por segundos e pensas mesmo que talvez – talvez! – o tipo de collants tenha ficado preso no elevador e te vá tocar à campainha brevemente.
Mas o filme acaba – acaba sempre! – e és obrigada a enfrentar de novo a realidade. Não adianta pores o novo DVD que compraste, não adianta iludires-te com outra história de encantar com um final feliz. E o teu estado deprimente atinge o auge quando te deitas no sofá como quem perde todas as forças e ficas a ver o Discovery Channel sobre as novas abelhas assassinas. Dás por ti a rezar que as suas pequenas asas consigam aguentar a viagem de África até ao teu apartamento para pôr fim ao teu sofrimento. E depois levantas-te tentando afastar o pensamento suicida da tua pobre cabeça. Pensas na estupidez que estás a fazer e para acabar – ou adiar – estes pensamentos idiotas resolves ir deitar-te. Convences-te que é do cansaço e amanhã tudo parecerá melhor.
Mas a manhã nasce e o despertador acorda-te com o seu som irritante e tu imploras que o relógio ande para trás, mas ele recusa-se. São muito snobes estes relógios hoje em dia!
Quando estás pronta para levantares âncora para mais um dia duro de trabalhos em cima de trabalhos há uma folha cuidadosamente dobrada debaixo da porta. Os teus olhos não acreditam no que vêm...baixas-te e pegas nela...quando a abres...

Não se esqueça de fechar a porta! É para segurança de todos!

O presidente do Condomínio


Acabas por amachucar a folha e deita-la por cima do ombro, fechas a porta atrás de ti com força. Não há noites de sono que nos valham nestes casos!
Desces as escadas, possuida pela raiva porque o elevador deixou de funcionar e caminhas até ao carro com a cabeça a ferver.
E de repente...
“ A PORTA!”
corres desenfreadamente para trás só para não teres de ouvir mais um comentário sarcástico por cima de um dia infernal.
Colocas a mão no puxador e olhas para cima.
- Uau...




O tipo de collants encontrara o caminho para casa...

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Maps*

Imaginei um barco ao longe, de madeira, como o Pérola Negra dos Piratas das Caraíbas, mas restaurado e de velas restauradas. Imaginei-nos vestidas, naquele faz de conta, com roupas que mais parecem trapos e vestígios de batalhas emocionantes. Também imaginei mais duas pessoas que não interessam porque não é delas que vim falar.
Uma vez disseram-me que tinha algum jeito para as palavras e eu achei engraçado porque na verdade isto a que chamam jeito para as palavras é mais jeito para o coração.
Mas voltemos ao barco: o dia está agradável, alguns tímidos raios de sol aquecem-nos as costas constantemente marcadas pelo vento forte próprio daquela praia. E nós estamos ali, prontas a içar ancora e a desfraldar as velas. Prontas para ir em busca do conhecimento que aqui é escasso e não serve para alimentar a nossa sede.
Andámos à deriva nas ondas da vida, fomos apanhadas por tempestades e dilúvios de água salgada, mas estranhamente morna, como se o céu chorasse sobre nós. Ultrapassámos, na verdade, ultrapassamos sempre. E nesses dias, em que parece que o céu nunca se vai tornar azul novamente, corríamos para o convés e gritávamos o mais alto que podíamos. Deixávamos tudo sair de dentro de nós, deixávamos que a chuva nos libertasse da prisão, deixávamos que uma erupção explodisse dentro de nós. E depois, deixávamos- nos ficar deitadas a olhar o céu, ocasionalmente traçado uma um raio de luz, e ficávamos em silêncio. Só assim, a ouvir a chuva, a esperar que ela lavasse o que restava de nós, a esperar que talvez ela e o tempo se juntassem e fizessem a dor passar mais depressa. E estranhamente, tudo passava. Umas vezes mais depressa que outras, mas passava sempre. Coincidência? Queríamos pensar que sim, porque assustava-nos a ideia de não ser. Mas sabíamos que sempre o céu escurecia, o grande dilúvio se aproximava.
Mas em oposição a esses dias havia aqueles como o de hoje. Em que o sol acariciava a nossa pele e aquecia-nos daquela maneira tão particular que ele tem de o fazer. Aqueles em que nos apetecia rir sem parar e rebolar no chão. Aqueles em que dizíamos coisas estúpidas, aqueles em que lembrávamos parvoíces, aqueles em que nos sentíamos bem. Engraçado que esses dias sempre me pareceram mais curtos, talvez porque eram os que realmente importavam.
Foi isso que decidimos quando nos sentamos à beira mar da nossa última paragem. Era um porto. Um porto seguro onde o nosso barco tinha vindo dar ao cais depois de mais uma tempestade. Era um sítio um tanto ou quanto extraordinário, de aspecto antigo, de entradas grandiosas e salões frios mas encantadores. A praia ia-se afastando à medida que entravamos naquele novo mundo. Acabámos por ficar. Acabámos por fazer amizade com pessoas novas e até que nem estamos a desgostar deste novo porto.
Sabemos porém, que nem tudo dura para sempre. Também sabemos que o mais provável é só ficarmos aqui três anos, antes de nos fartarmos e partirmos de novo para outra aventura. Também sabemos que esse tempo vai passar a voar, porque passa sempre e que no final, vamos desejar voltar a trás e viver tudo de novo. Vamos chamar a este sítio casa, mas também vamos ter de novo a sede de conhecimento. Aqui, também chove. Também corremos e também gritamos. Aqui, ainda somos nós, ainda somos amigas e ainda sabemos que podemos confiar uma na outra.
Trocámos os farrapos e as espadas por calças de ganga e livros, mas as cicatrizes de guerra ficaram. Essas não se podem trocar, nem apagar, nem sequer tornar menos vivas na memória, porque essas ficam sempre, duram sempre, atormentam-nos para sempre, mas à medida que o tempo passa e a chuva cai elas vão-se tornando mais suportáveis e a dada altura conseguimos olhar para elas e esboçar um sorriso.
E esta é aquela altura em que tu perguntas o que aconteceu ao barco e à praia. A praia deu lugar a um parque, mas no fundo ainda vive perto de nós, mesmo à saída da nossa nova casa. O cheiro a sal ainda é perceptível por baixo da areia molhada. E o barco? Esse parou dentro de nós. Está num recanto do nosso coração à espera que o tempo passe e que as chuvas caiam, espera que três anos passem. Bem amarrado com nós fortes de marinheiro, espera-nos a nós.
E nós? Nós pegamos nos livros e vamos a correr, não para o convés mas para uma sala de aula, porque a campainha já tocou e vamos ter aquela stora que nos assusta particularmente. E no caminho desejamos ver aquela pessoa que apesar de trazer tempestades e nevoeiros também nos dá uns raios de Sol quando sorri. Somos masoquistas dessa maneira, mas faz parte de nós. Despedimo-nos rapidamente com um beijinho terno na bochecha e navegamos para outras ilhas, não muito distantes.
Ainda somos nós. E vamos sempre ser...

(dedicado a Catarina Tinoco)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Horas doces

Mandou-me sentar à sua frente, após longos minutos a olhar-me de cima a baixo. Nem acreditava que estava ali outra vez, frente a frente com a minha consciência. Só que agora a minha consciência tinha-se transformado numa figura de olhos azuis como o mar e cabelo ondulado. Sentado numa cadeira de vime, baloiçava-se olhando para o tecto como se esperasse que algo se projectasse lá.
Pelo canto do olho vi-o. Outra vez? E porque captava sempre a minha atenção quando precisava de me concentrar em...
Os olhos azuis fixavam-me agora.
“Um de cada vez malta!” pensava eu com os neurónios já a temperaturas alucinantes.
Remexeu-se no banco de jardim, segurando a palheta esbranquiçada com os lábios, aconchegou a guitarra no colo e olhou escassos segundos na minha direcção.
“Concentra-te!!!” ordenei a mim mesma.
- Com que então aqui outra vez...(longo suspiro)...mas a menina não aprende?
“Pois ...acho que não”. Apesar dos seus olhos transbordarem confiança e vida, estávamos perante um senhor de alguma idade. Já mostrava madeixas brancas por entre os cabelos negros e rugas nos cantos dos olhos. Senti uma vontade enorme de o encher com perguntas sobre toda a sua vida, mas sabia ser uma ocasião imprópria para o fazer...dadas as circunstâncias.
- Querer-me contar o que aconteceu desta vez?
“É que nem eu sei...” foi o pensamento que rapidamente engoli. Tantas tinham sido as vezes que ali tinha estado em frente dele que naquele momento parecia a única coisa constante na minha vida...não que isso fosse necessariamente bom, mas o cheiro a primavera tornava acolhedor o alpendre o que me fazia sentir a casa, era como se os problemas pairassem sobre a minha cabeça mas sem exercer qualquer tipo de poder sobre mim... contava-se pelos dedos as vezes que me sentia assim.
Balancei também eu na cadeira. Já se sentia o cheiro intenso a relva molhada e a terra quente.
Os meus olhos traíram-me espreitando discretamente – tão discretamente que nem eu me dei conta! - para o banco de pedra uns metros mais à frente. O silêncio, da preguiça dos dias quentes, permitia que se ouvisse a doce melodia da guitarra. Quem me dera saber tocar assim...quando ouvia aquela melodia parecia que todos os meus outros sentidos ficavam apurados. O cheiro da relva tornava-se cada vez mais intenso, os dedos acariciavam o vime da cadeira, as cores daquele cenário tornavam-se mais vivas e quase conseguia saborear a frescura da água que dançava na pequena fonte no meio do pátio.
- Mas para onde olha com tanta curiosidade?
Balancei a cabeça na direcção da personagem sem sequer pensar. O velho sorriu e pela primeira vez em muitos anos vi os seus olhos brilharem.
- Conhece-lo? – perguntou-me num tom quase paternal que me fez mexer desconfortavelmente na cadeira.
- Vejo-o muitas vezes...
- A menina sempre teve o dom de fugir às perguntas...perguntei se o conhecia, não a regularidade com que o fixava.
“Eu não o fixo!” ripostei, mas para dentro, não queria agora discutir pormenores de gramática, nem queria que me provasse que mentia a mim mesma quando me convencia de que era um mero olhar.
- Não sei...
- Não sabe? Como não sabe?
Sorri, rindo-me da resposta que iria guardar para mim mesma. Nunca tinha falado com ele, nunca lhe tinha tocado, nunca sequer me tinha aproximado mais do que alguns metros; mas sentia que o conhecia, os seus gestos já se tinham tornado familiares e os meus olhos já se haviam acostumado à sua beleza invulgar.
A melodia estava agora em perfeita sintonia com os últimos raios de sol da tarde, em breve, sabia-o eu, levantar-se-ia e partiria tocando melodias harmoniosas rua abaixo. Em breve, sabia-o eu, os meus sentidos voltariam à habitual percepção banal das coisas.

Mas por agora só o pôr-do-sol e a doce melodia...

O cheiro da relva a tornar-se cada vez mais intenso, os dedos a acariciar o vime, as cores do cenário a tornarem-se mais vivas e o sabor a frescura, da água que dançava na pequena fonte no meio do pátio...

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Hortelã Pimenta


Encontrava-me em frente daquela porta, fechada, tão cheia daquele cheiro familiar a hortelã pimenta que esvoaçava pela casa actualmente tão incrivelmente vazia. Tinha nos cantos as marcas de uma vida inteira de alegria e vontade de viver. E o que fazia eu ali? De mãos atadas, de pensamentos confusos, de garganta seca cheia de medo. O que esperava por mim era algo que não podia evitar, mas será que seria agora altura de me confrontar com o meu maior medo?
Encostei a palma da mão gelada à madeira envernizada da porta que me parecia estar a ferver. Um arrepio frio percorreu-me as costas e o último fluxo de forças abandonou o corpo. Tinha de sair dali.
Afastei-me da porta e entrei na sala, escura e pesada. O sofá onde o vira sentado tantas vezes, de óculos apoiados no nariz e olhar absorto em ternura, parecia agora mais vazio que nunca. A avó tinha fechado as janelas e apenas um raio tímido de Sol se atrevia a passar pelas frestas da portada já cansada das noites de farra de antigamente. O relógio de pêndulo fazia a sala ter um ambiente ainda mais soturno, mas pelo menos ali conseguia respirar.
O meu peito contraiu-se quando vi os óculos delicadamente poisados em cima da mesa de vidro que acumulara pó. A avó tinha abandonado as limpezas, naquela altura havia coisas mais importantes a fazer!
Ouvi passos no corredor e corri para fechar a porta, precisava de respirar sozinha, precisava de tempo para absorver tudo o que havia acontecido. Nunca fora religiosa, mas agora que me encontrava ali arrependia-me arduamente de não o ser. Abracei-me a mim mesma e sentei-me no tapete onde tantas vezes o ouvira cantar o fado. Porque tinha tudo de mudar?
A televisão, incrivelmente pequena e engraçada, era a única peça que puxava a sala para o século vinte e um, todo o resto se caracterizava pelo seu aspecto já entristecido e vivido.
Fechei os olhos à espera de ouvir os meu próprios pensamentos mas, e pela primeira vez em toda a minha vida, só se ouvia o silêncio. Uma lágrima teimosa e indomável escorreu-me pela face, mas o silêncio permaneceu.
O relógio de pêndulo anunciou que já eram cinco horas, e casa entrou na euforia do costume, há coisas que não mudam. Levantei-me rapidamente e saí daquela sala. No corredor o cheiro sufocante a hortelã pimenta voltou a invadir-me. A porta estava agora entreaberta como se me convidasse a entrar, como se tentasse fazer com que fosse impossível passar por ela e não entrar.
E lá estava eu outra vez, mesmo em frente da porta de mãos atadas, de mente confusa e silenciosa. Coloquei a mão no puxador e respirei fundo.
Ouvi foi o barulho abafado do pêndulo e o reflectir dos raios nas lentes dos óculos, era agora...
Abri a porta marcada pelo tempo e por uma vida inteira de alegria e vontade de viver.

sábado, 18 de abril de 2009

paragem de autocarro

A vida é engraçada... Às vezes tudo o que queremos é que o destino deixe a sorte passar em forma de monstro de quatro rodas... Outras desejamos que ele nunca chegue, nunca passe, só para pudermos aproveitar aqueles minutos em que não temos que fazer nada mais, a não ser...esperar...
Sorte é algo relativo. Para muitos sorte seria chegar a casa depois de um dia complicado e não ter de se preocuparem com mais nada. Para outros é sair o euromilhões para finalmente puderem ir naquelas férias de sonho. E por pequenas fracções do dia pensamos: “´É hoje!” É hoje que o universo nos vai atirar aquela migalha satisfazendo os nossos pedidos, nas nossas cansadas cabeças, muito consideráveis!
Mas penso que o que me fez sair de casa neste chuvoso dia de Abril não foi a sorte ou o azar, nem o dever ou a obrigação...vim para aqui para ouvir os meus pensamentos, aqueles que mantenho em ruído de fundo para que não afectem a concentração, não posso deixar que falem porque não posso sentir.
Dramático? Talvez, mas duvido que exista alguém que discorde.
Olho em volta de todas as pessoas que passam naquela maratona do “Estou atrasado!” ou do “Ela vai-me matar!” mas só uma pessoa me sobressai. Um rapaz que brinca com a ponta do chapéu de chuva numa poça de água e que não parece afectado pelo mundo.
Chove a potes. Sorte a dos que podem vê-lo de perto, sentir o frio, ouvir a chuva... Azar o dos que se esqueceram do chapéu, azar o dos que não gostam de chuva. Mas já a minha avó dizia “A chuva é cá precisa” e sabedorias destas não se podem, nem se devem ignorar.
Mexe-se no banco como se toda a panorâmica da cidade o divertisse. Com um – e só um! – phone nos ouvidos parece absorver tudo o que o envolve: os barulhos, os movimentos, as imagens. Como se nunca quisesse esquece-los, como se desenha-se na sua mente um guião de um filme que varia tão rapidamente entre comédia e acção, romance ou aventura.
Pego no caderno, há algo de muito especial nas suas páginas amarelecidas da idade que faz com que ande sempre com ele. Foi-me oferecido por alguém muito especial que me disse: “Não penses numa história, escreve-a” e durante anos me atormentei com a ideia de que o tinha de guardar para algo especial até que me apercebi que tudo o que escreve-se seria especial se escreve-se o que pensava.
Hora de ponta, na paragem as pessoas comprimiam-se para que todas tivessem um espacinho seco enquanto esperavam pela única coisa que ainda era certa nas suas vidas. E sem pensar, levantei-me e deixei que uma senhora sentar-se no meu lugar, saí do pequeno cubículo e pela primeira vez durante toda a tarde senti as gotas de chuva na minha pele. Arrumei o caderno, mas sem pressas, se se molhasse só o iria tornar mais mágico.
Dentro da minha cabeça cada pensamento queria falar mais alto, até que só se ouviam gritos confusos, mas sabia bem, sabia bem ouvir-me no meio dos sons avassaladores da cidade.
Dei-me permissão para sorrir.
O rapaz saiu do cubículo e olhou para mim como se eu tivesse perdido do juízo...depois, para grande surpresa minha, sorriu também. E ficamos ali os dois, duas personagens de uma história que ainda nem tinha começado...

A vida é engraçada... Às vezes tudo o que queremos é que o destino deixe a sorte passar em forma de monstro de quatro rodas...

sábado, 4 de abril de 2009


Atirei mais uma vez a folha por cima do meu ombro, já não podia perspectivar as coisas de uma maneira diferente, já não havia outros pontos de vista! Olhei em volta e toda a sala parecida dominada por pequenas bolas de papel de tonalidades diferentes. “Os ambientalistas não vão gostar nada disto” pensei para comigo em jeito de piada seca para ver se me animava, isto antes de perceber que não tinha piada nenhuma. Mesmo assim, consegui arrancar um sorriso dos meus lábios. Olhei para a minha fiel companheira de quatro patas aninhada junto da minha secretária, de olhos brilhantes repletos de compreensão. Respirei fundo e deixei-me cair na cadeira de lona onde estivera toda a tarde a tentar escrever algo que não sabia muito bem como começar. O relógio atrás de mim não parava de balançar os seus ponteiros, sempre na mesma direcção avisando-me de que o tempo não iria voltar atrás, nem sequer por um segundo para me dar tempo para pôr as ideias em ordem. Completamente convicta de que a inspiração não iria voltar nas próximas horas - talvez dias! – levantei-me e abri a janela, de par em par, como se um raio de sol que fosse me deixasse sentir melhor comigo mesma. Afinal, o trabalho poderia esperar.
Cá fora, as crianças do bairro tinham-se juntado na praça para aproveitarem as férias, o sol e as horas livres, cada vez mais escassas. “Tenho saudades de ser assim” pensei alto, olhando depois em volta para garantir que nenhum ser me tinha escutado. O bonito dia que se desenrolava em frente dos meus olhos fez-me sentir pena de não poder sair para a rua, correr e deixar tudo para trás, nem que fosse por um só dia.
Olhei em volta e depois através da janela de novo.

Nem que fosse por um só dia...

terça-feira, 31 de março de 2009

O peso do mundo

- Abri os olhos como se o movimento me liberta-se. Acho que precisamos dessas pequenas sensações para apreciarmos o que é estar vivo...
- Como se a liberta-se? Sente-se presa?
- Sempre me descrevi como livre, não gostava de me começar a contradizer agora...
- Até que ponto se sente livre?
- Vai dependendo dos dias e das pessoas. Há alguns em que me sinto pairar, como se todos os problemas fossem plumas e as respostas estivessem à minha espera, nesses dias não há limite para me sentir livre.
- E nos outros?
-...nos outros...
(mexe no cabelo e olha através da janela)
- Nos outros sou a armadura que toda a gente é, os gestos são mecanizados, não posso dizer que é uma prisão mas também não sou livre é como se estivesse programada para fazer o que tenho a fazer. Os problemas também pesam mais nesses dias.
- Sente o peso do mundo nas suas costas?
- O mundo é leve, nós tornamo-lo pesado...
- Quer-se explicar?
- Não...

segunda-feira, 30 de março de 2009

É parte de mim


- Vi-o do outro lado do vidro, incrivelmente imponente em toda a tua graça como se já não fosse por si só uma tentação. Como se soubesse que me prendia o olhar sempre que passava por ali, como se não soubesse que entrava naquele lugar só para o ver. Se sabia, fingia não dar por isso. Nunca gostei tanto do som de um piano como naqueles momentos, nunca apreciei tanto uma guitarra, nunca percebi como combinavam tão bem...

- Porque só falas dele agora? Quem é?

- Pergunta errada. Não é um quem é um o quê, mas entendo a confusão. Talvez se confunda com desejo, talvez com amor, talvez com prazer. Talvez até seja um pouco de tudo, gostava de ter descoberto tudo isso...

- Pareces apaixonada...

- Não é dificil perceber isso.

- É parte do teu passado?

- É parte do meu presente...