Imaginei um barco ao longe, de madeira, como o Pérola Negra dos Piratas das Caraíbas, mas restaurado e de velas restauradas. Imaginei-nos vestidas, naquele faz de conta, com roupas que mais parecem trapos e vestígios de batalhas emocionantes. Também imaginei mais duas pessoas que não interessam porque não é delas que vim falar.
Uma vez disseram-me que tinha algum jeito para as palavras e eu achei engraçado porque na verdade isto a que chamam jeito para as palavras é mais jeito para o coração.
Mas voltemos ao barco: o dia está agradável, alguns tímidos raios de sol aquecem-nos as costas constantemente marcadas pelo vento forte próprio daquela praia. E nós estamos ali, prontas a içar ancora e a desfraldar as velas. Prontas para ir em busca do conhecimento que aqui é escasso e não serve para alimentar a nossa sede.
Andámos à deriva nas ondas da vida, fomos apanhadas por tempestades e dilúvios de água salgada, mas estranhamente morna, como se o céu chorasse sobre nós. Ultrapassámos, na verdade, ultrapassamos sempre. E nesses dias, em que parece que o céu nunca se vai tornar azul novamente, corríamos para o convés e gritávamos o mais alto que podíamos. Deixávamos tudo sair de dentro de nós, deixávamos que a chuva nos libertasse da prisão, deixávamos que uma erupção explodisse dentro de nós. E depois, deixávamos- nos ficar deitadas a olhar o céu, ocasionalmente traçado uma um raio de luz, e ficávamos em silêncio. Só assim, a ouvir a chuva, a esperar que ela lavasse o que restava de nós, a esperar que talvez ela e o tempo se juntassem e fizessem a dor passar mais depressa. E estranhamente, tudo passava. Umas vezes mais depressa que outras, mas passava sempre. Coincidência? Queríamos pensar que sim, porque assustava-nos a ideia de não ser. Mas sabíamos que sempre o céu escurecia, o grande dilúvio se aproximava.
Mas em oposição a esses dias havia aqueles como o de hoje. Em que o sol acariciava a nossa pele e aquecia-nos daquela maneira tão particular que ele tem de o fazer. Aqueles em que nos apetecia rir sem parar e rebolar no chão. Aqueles em que dizíamos coisas estúpidas, aqueles em que lembrávamos parvoíces, aqueles em que nos sentíamos bem. Engraçado que esses dias sempre me pareceram mais curtos, talvez porque eram os que realmente importavam.
Foi isso que decidimos quando nos sentamos à beira mar da nossa última paragem. Era um porto. Um porto seguro onde o nosso barco tinha vindo dar ao cais depois de mais uma tempestade. Era um sítio um tanto ou quanto extraordinário, de aspecto antigo, de entradas grandiosas e salões frios mas encantadores. A praia ia-se afastando à medida que entravamos naquele novo mundo. Acabámos por ficar. Acabámos por fazer amizade com pessoas novas e até que nem estamos a desgostar deste novo porto.
Sabemos porém, que nem tudo dura para sempre. Também sabemos que o mais provável é só ficarmos aqui três anos, antes de nos fartarmos e partirmos de novo para outra aventura. Também sabemos que esse tempo vai passar a voar, porque passa sempre e que no final, vamos desejar voltar a trás e viver tudo de novo. Vamos chamar a este sítio casa, mas também vamos ter de novo a sede de conhecimento. Aqui, também chove. Também corremos e também gritamos. Aqui, ainda somos nós, ainda somos amigas e ainda sabemos que podemos confiar uma na outra.
Trocámos os farrapos e as espadas por calças de ganga e livros, mas as cicatrizes de guerra ficaram. Essas não se podem trocar, nem apagar, nem sequer tornar menos vivas na memória, porque essas ficam sempre, duram sempre, atormentam-nos para sempre, mas à medida que o tempo passa e a chuva cai elas vão-se tornando mais suportáveis e a dada altura conseguimos olhar para elas e esboçar um sorriso.
E esta é aquela altura em que tu perguntas o que aconteceu ao barco e à praia. A praia deu lugar a um parque, mas no fundo ainda vive perto de nós, mesmo à saída da nossa nova casa. O cheiro a sal ainda é perceptível por baixo da areia molhada. E o barco? Esse parou dentro de nós. Está num recanto do nosso coração à espera que o tempo passe e que as chuvas caiam, espera que três anos passem. Bem amarrado com nós fortes de marinheiro, espera-nos a nós.
E nós? Nós pegamos nos livros e vamos a correr, não para o convés mas para uma sala de aula, porque a campainha já tocou e vamos ter aquela stora que nos assusta particularmente. E no caminho desejamos ver aquela pessoa que apesar de trazer tempestades e nevoeiros também nos dá uns raios de Sol quando sorri. Somos masoquistas dessa maneira, mas faz parte de nós. Despedimo-nos rapidamente com um beijinho terno na bochecha e navegamos para outras ilhas, não muito distantes.
Ainda somos nós. E vamos sempre ser...
(dedicado a Catarina Tinoco)
OOOOOOH, este texto *-* está bem guardadinho na minha caixa das coisas importantes, sabes?
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