Mandou-me sentar à sua frente, após longos minutos a olhar-me de cima a baixo. Nem acreditava que estava ali outra vez, frente a frente com a minha consciência. Só que agora a minha consciência tinha-se transformado numa figura de olhos azuis como o mar e cabelo ondulado. Sentado numa cadeira de vime, baloiçava-se olhando para o tecto como se esperasse que algo se projectasse lá.
Pelo canto do olho vi-o. Outra vez? E porque captava sempre a minha atenção quando precisava de me concentrar em...
Os olhos azuis fixavam-me agora.
“Um de cada vez malta!” pensava eu com os neurónios já a temperaturas alucinantes.
Remexeu-se no banco de jardim, segurando a palheta esbranquiçada com os lábios, aconchegou a guitarra no colo e olhou escassos segundos na minha direcção.
“Concentra-te!!!” ordenei a mim mesma.
- Com que então aqui outra vez...(longo suspiro)...mas a menina não aprende?
“Pois ...acho que não”. Apesar dos seus olhos transbordarem confiança e vida, estávamos perante um senhor de alguma idade. Já mostrava madeixas brancas por entre os cabelos negros e rugas nos cantos dos olhos. Senti uma vontade enorme de o encher com perguntas sobre toda a sua vida, mas sabia ser uma ocasião imprópria para o fazer...dadas as circunstâncias.
- Querer-me contar o que aconteceu desta vez?
“É que nem eu sei...” foi o pensamento que rapidamente engoli. Tantas tinham sido as vezes que ali tinha estado em frente dele que naquele momento parecia a única coisa constante na minha vida...não que isso fosse necessariamente bom, mas o cheiro a primavera tornava acolhedor o alpendre o que me fazia sentir a casa, era como se os problemas pairassem sobre a minha cabeça mas sem exercer qualquer tipo de poder sobre mim... contava-se pelos dedos as vezes que me sentia assim.
Balancei também eu na cadeira. Já se sentia o cheiro intenso a relva molhada e a terra quente.
Os meus olhos traíram-me espreitando discretamente – tão discretamente que nem eu me dei conta! - para o banco de pedra uns metros mais à frente. O silêncio, da preguiça dos dias quentes, permitia que se ouvisse a doce melodia da guitarra. Quem me dera saber tocar assim...quando ouvia aquela melodia parecia que todos os meus outros sentidos ficavam apurados. O cheiro da relva tornava-se cada vez mais intenso, os dedos acariciavam o vime da cadeira, as cores daquele cenário tornavam-se mais vivas e quase conseguia saborear a frescura da água que dançava na pequena fonte no meio do pátio.
- Mas para onde olha com tanta curiosidade?
Balancei a cabeça na direcção da personagem sem sequer pensar. O velho sorriu e pela primeira vez em muitos anos vi os seus olhos brilharem.
- Conhece-lo? – perguntou-me num tom quase paternal que me fez mexer desconfortavelmente na cadeira.
- Vejo-o muitas vezes...
- A menina sempre teve o dom de fugir às perguntas...perguntei se o conhecia, não a regularidade com que o fixava.
“Eu não o fixo!” ripostei, mas para dentro, não queria agora discutir pormenores de gramática, nem queria que me provasse que mentia a mim mesma quando me convencia de que era um mero olhar.
- Não sei...
- Não sabe? Como não sabe?
Sorri, rindo-me da resposta que iria guardar para mim mesma. Nunca tinha falado com ele, nunca lhe tinha tocado, nunca sequer me tinha aproximado mais do que alguns metros; mas sentia que o conhecia, os seus gestos já se tinham tornado familiares e os meus olhos já se haviam acostumado à sua beleza invulgar.
A melodia estava agora em perfeita sintonia com os últimos raios de sol da tarde, em breve, sabia-o eu, levantar-se-ia e partiria tocando melodias harmoniosas rua abaixo. Em breve, sabia-o eu, os meus sentidos voltariam à habitual percepção banal das coisas.
Mas por agora só o pôr-do-sol e a doce melodia...
O cheiro da relva a tornar-se cada vez mais intenso, os dedos a acariciar o vime, as cores do cenário a tornarem-se mais vivas e o sabor a frescura, da água que dançava na pequena fonte no meio do pátio...
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